Ninguém:
- Que andas tu aí buscando
- Mil cousas ando a buscar:
- delas não posso achar,
- porém ando porfiando.
- por quão bom é porfiar.
- como hás o nome, cavaleiro?
- Eu hei nome Todo o Mundo,
- e meu tempo todo inteiro
- sempre é buscar dinheiro,
- e sempre nisto me fundo.
- Eu hei Ninguém,
- e busco a consciência.
- Esta é boa experiência:
- Dinato, escreve isto bem.
- Que escreverei, companheiro?
- Que Ninguém busca consciência,
- e Todo o Mundo dinheiro.
- E agora que buscas lá?
- Busco honra muito grande.
- E eu virtude, que Deus mande
- que tope com ele já.
- Outra adição nos acude:
- escreve logo aí, a fundo,
- que busca honra Todo o Mundo,
- e Ninguém busca virtude.
- Buscas outro mor bem qu'esse?
- Busco mais quem me louvasse
- tudo quanto eu fizesse.
- E eu quem me reprendesse
- em cada cousa que errasse.
- Escreve mais.
- Que tens sabido?
- Que quer um extremo grado
- Todo o Mundo ser louvado,
- e Ninguém ser repreendido.
- Buscas mais, amigo meu?
- Busco a vida e quem me dê
- A vida não sei que é,
- a morte conheço eu.
- Escreve lá outra sorte.
- Que sorte?
- Muito garrida
- Todo o Mundo busca vida,
- e Ninguém conhece a morte.
- E mais queria o paraiso,
- sem mo ninguém estovar.
- E eu ponho-me a pagar
- quanto devo para isso.
- Escreve com muito aviso.
- Que escreverei?
- Escreve
- Que todo mundo quer paraíso,
- e Ninguém paga o que deve.
- Folgo muito d'enganar,
- e mentir nasceu comigo.
- Eu sempre verdade digo,
- sem nunca me desviar.
- Ora escreve lá, compadre,
- não sejas tu preguiçoso.
- Quê?
- Que Todo o Mundo é mentiroso,
- e Ninguém diz a verdade.
- Que mais buscas?
- Lisonjear.
- Eu estou todo desengano.
- Escreve, ande lá, mano.
- Que me mandas assentar?
- Põe ai mui declarado,
- não te fique no tinteiro:
- Todo o Mundo é lisonjeiro,
- e Ninguém desenganado.
Garrida - sentido no texto: elegante, bem-feito, vistoso
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