sábado, 2 de agosto de 2014

Bahia

O que eu herdei de minha gente eu nunca posso perder.
(Caetano Veloso)

Para Etumerina

Bahia, de todos os santos
És o mais bem habituado
Renomado, consagrado
Habitado, batizado
Pelo mar, denominado
Bahia.
Dos nossos santos
E não cabe somente neles
O teu céu, e és o prazer daqueles
Que vêm em terra, porque deles
É o sabor do teu sal e eles
Te devoram por ser
Bahia.

És o santo
Da terra

De todos.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O homem sentado

Ainda vão me matar numa rua
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.
(Leminski)

 O homem estava sentado. Por minutos a fio o homem permanecera sentado, com as mãos segurando o queixo e o os olhos vidrados na rua. A rua, em pé, corria. De ambos os lados, dum lado pro outro, fazendo o barulho de milhares de rodas, línguas e almas. O homem não ouvia. Pela primeira vez em anos estava sentado de frente para a rua, os olhos abertos a boca fechada. A rua o engolia sem atentar para ele. O homem sugava a rua. Sentado como nunca antes, o homem sorria. A rua não. Dura, horizontal e fria continuou séria. Não era do homem, ele era dela.
  O homem sentado sentiu no bolso do paletó o chamado: levanta-te e anda. Seus pés obedeceram de pronto, ele não. A rua passava. O homem estava de pé, ainda que não percebesse. O homem estava atrasado mas queria alcançar a rua. Amava a rua. Amava quem ela era, quem era dela. Queria ser também. Queria ser os pés que nela andavam e as cabeças que nela dormiam. Por anos estivera de pé entre quatro paredes e doze andares sem que pudesse obtê-la. Só quando parou e sentou é que chegou até ela. Agora estava novamente em pé, mas, mais do que isso, de pé em frente a rua.
  É sua, vai buscar! Ele foi. O homem perseguiu a rua e entrou nela como se achasse a saída. O homem encheu os olhos de água; estava em pé mas estava na rua. A rua impassível não ia deixar que ele passasse. O homem em pé ousou mais do que ela permitiria. A rua era um milhão ele era um. Era um homem em pé. O homem em pé beijou a rua. A rua reagiu, severa. A rua castigou o homem em pé. O homem estava deitado.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Desfavelado

Me firmo, triste e chateado
                               Desfavelado.
(...) 
Antes que me urbanizem a régua, compasso,
computador, cogito, pergunto, reclamo:
Por que não urbanizam antes
a cidade?
Era tão bom que houvesse uma cidade
na cidade lá embaixo.
(Favelário Nacional - Carlos Drummond de Andrade)

  Melhor descer, lhe diziam. Aqui em cima tu não consegue nada. Lá embaixo é que é. Tem emprego, tem escola, tem grana. Tem futuro, tem mulher, tem gana. Tem honestidade e religião. Tem rosto, tem voz, tem nome. Aqui cê vive de nada em nada, boca em boca, fome em fome. Cê pisa no mato, na terra, no esgoto. Ninguém bebe a tua lágrima nem ri teu sorriso. Teu cheiro ninguém cheira e teu nome ninguém sabe. Teu samba ninguém ginga e tua boca ninguém abre. Ninguém apaga teu barraco quando pega fogo, ninguém te enxuga quando vem enchente. Aqui cê não tem ninguém nem nada. Lá embaixo é que tem gente. Cê nasceu no lado errado, ouvia. Aqui em cima tem preto, tem noite e faz frio. Tu é claro, moleque, que nem o dia. Desce que aqui tu não encontra saída. Lá embaixo tem mãe, tem pai, tem comida. Lá é que tem gente de verdade e tem vida.
  Desceu. Desceu do morro e foi pra baixo como a casa de dona Maria sempre ia na chuva. Andou lá por baixo como cão que cai do caminhão de mudança. Quis latir, abafaram. Quis chamar, não ouviram. Quis gritar e barraram. Aqui embaixo cê tenta e não consegue, ouvia. É tristeza, é cruel, é dureza João. É sempre sem fundo. Cê enta escalar mas vai pra baixo. Pra baixo dos toldos, paredes, encanamentos. Sob os pés dos outros, sobre os joelhos próprios. Aqui embaixo ninguém te levanta a voz e os olhos. Ninguém chora tua dor nem te faz alegria. Chorar é para os fracos, e todos choram. Melhor ir chorando moleque, lhe diziam. Aqui embaixo tu não é nada.

quarta-feira, 5 de março de 2014

A quem interessar poça

Para Ivan Calaça                                            

Nos trigésimos andares
As almas, pilares
Dos crânios sobrepostos
Em capas, aposto
Nas vozes compridas
Cumpridas, detidas
Pela chuva caindo
Subindo, subindo
Desde o Tietê
(Vai você, vai você!)
Salvar a trouxa de roupas
Tão soltas, tão frouxas
Flutuando nas poças
Tão fundas, tão nossas
Com os pés chapinhando
Gemendo, cantando
Uma ópera fria
Cansada, vazia
No vazio desses quartos
Entulho, pedaços 
Da madeira do teto
Tijolo, concreto
Sobre as pernas e os braços
Esboços, fracassos
Da cidade inteira
Marginal e ladeira 
Sofrimento do mundo
(Tão fundo, tão fundo...)
Como monstros ilhados
Janelas, telhados
E o tudo nadando
Sofrendo, boiando
E pedindo socorro
(O morro! O morro!)
Devagar desabando
E mexendo, pesando
Nem se chega ao final
Se dá mal, se dá mal
Só sofre de enchente
(E a gente? E é gente?)
Nessa chuva levada
Vai ingrata, errada
Que despreza a seca
Lá foge, não chega
E aqui é  um sufoco
Tanto só pra um pouco
Com água até o pescoço
(De novo, de novo...)
A escalar toda vida
Sem ajuda, subida
E não há quem socorre
Nem nasce, já morre
Como quem não resmunga
Nem respira, afunda 
Insanamento básico
Em descaso apático
Se esgueirando de lado
Nesse mundo encharcado
Pra morrer em segredo
Ensopado, mas seco.