domingo, 26 de maio de 2013

Fale ao motorista somente o indispensável

  O crachá ia do lado direito do peito com as letras todas maiúsculas. Era preferível assim, já que os passageiros podiam olhar pelo retrovisor pra se certificarem enquanto se balançavam nos assentos. Eles nunca se certificavam. Vinte e sete anos, nenhuma checagem. Pelo menos nenhuma de que ele se lembrasse. Uma única vez um conhecido o chamara pelo nome e ele nem se lembrava de qual conhecido era. No restante do tempo era só o Motorista.
  Não importavam as pessoas nem os lugares, sotaques, estados de espírito. O modo como todos o chamavam de motorista pelas costas deixou de incomodá-lo depois de algum tempo. Era isso o que ele era. O motorista. Pronto para guiar, ultrapassar, diminuir, parar. Antes, com tal zelo, sempre e tanto, sem nunca deixar de ser mais do que o homem do volante, o senhor da estrada contido em um nome comum, plural, fácil.
  Difícil de pronunciar parecia ser o agradecimento que nunca vinha. Não que ele esperasse vir nem que não esperasse. Já tinha passado da idade de esperar qualquer coisa além do dia da folga. Era o motorista. Se olhando no espelho era só o que via. Não era o único. Seguia sendo o motorista, seguindo sempre a estrada, sem agradecimento, sem nome, sem rosto que não fosse o seu.
   Barulho. O período da tarde era o pior já que o sol batia na cara de todos e ninguém se lembrava de dormir. Falavam. Acordados no ônibus cheio, os passageiros se rebelavam contra as dormências do corpo castigando os músculos da boca, gastando saliva uns com os outros. Não com ele, nunca com o motorista. Mas deixar de escutar ele não podia.  
  Escutou até o penúltimo ponto. Em meio aos discursos restantes o sinal de parada foi dado. O ônibus parou e as portas se abriram daquele modo que só elas sabem. Lentamente, com calma, preparando quem fosse descer. Ninguém desceu. Ele olhou para trás e não conseguiu ver, em meio aos passageiros, quem se voluntariasse a sair. Só conseguiu ouvir. Do meio do ônibus vinha o lamento da mulher que pedia, quase implorando, que o filho fosse com ela. O menino se recusava, bradando algo que se referia ao homem do volante. "Deixa!" sugeriram. A mãe deixou. Pelo retrovisor ele observou o menino se aproximar, aos pulos, dizendo algo que ele demorou em entender.
  - Obrigado motorista! 
  Silêncio interno. Sai o menino. O ônibus volta a rodar. O crachá vai do lado direito do peito mas ele não consegue mais divisar as letras. Sabe o que é e se orgulha. Não precisa saber mais nada. É o motorista. Só isso.