sexta-feira, 13 de abril de 2012

Encarnação

  Todo mundo a conhecia. Tratavam-na por Dona. De que eu não sei; levando aquela vida simples não parecia ser dona de nada. Mas assim a tratavam. Morava ali, sozinha, na esquinazinha, não sabe onde é? Todo mundo sabia. Dona Encarnação conhecia todo mundo. Conversava com os rapazes na rua, que a cumprimentavam sempre do mesmo modo, acenando com a cabeça. Elogiava as moças, que lhe traziam doces e salgados de graça e ela só precisava colocar na conta de Deus. Brincava com as crianças, que sentavam em seu colo, lhe pediam por histórias e as ouviam sem dizer uma palavra  que fosse, exclamando apenas com os olhos.
  Dona Encarnação era de todos. Precisasse o menino de ajuda ela dava. Carecesse a moça de conselho lá estava. Até os homens e mulheres já maduros e com tempo de vida gasto iam até ela pra desabafar e pra que fossem desabafados. Ela sempre ali, com os olhos pesados e o sorriso presente, nunca negando nada, sempre se doando toda. E amavam-na. E ela amava. Sem excluir ninguém, sem esquecer nada, mesmo com a memória já falha. Não sabiam de onde viera. Ela não tinha ninguém, mas todos a tinham. Aparecera por ali pra viver e pra ser vivida por quem quisesse. Desde que chegara, unira a vizinhança por um amor indelével e fraterno. Saía todos os dias e se sentava no quintal da frente, em sua cadeira de balanço, acompanhando a vida externa diariamente como quem acompanha uma dessas novelas de televisão que interessam um país inteiro.
  Um dia não saiu. Esperaram o dia todo, os transeuntes, estranhando a ausência dela que já era um patrimônio particular do bairro, um monumento que piscava e respirava. Chamaram-na; não respondia. Preocupou-se toda uma vizinhança. Os rapazes escalaram o muro e arrombaram a porta. As moças ofegavam. Cautelosamente entraram e percorreram a casa, com a própria palpitação quase ensurdecendo-os. Foram encontrar dona Encarnação sentada em sua cadeira, com a cabeça pendente sobre o corpo desvanecido. Desencarnou.

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