Me firmo, triste e chateado
Desfavelado.
(...)
Antes que me urbanizem a régua, compasso,
computador, cogito, pergunto, reclamo:
Por que não urbanizam antes
a cidade?
Era tão bom que houvesse uma cidade
na cidade lá embaixo.
(Favelário Nacional - Carlos Drummond de Andrade)
Melhor descer, lhe diziam. Aqui em cima tu não consegue nada. Lá embaixo é que é. Tem emprego, tem escola, tem grana. Tem futuro, tem mulher, tem gana. Tem honestidade e religião. Tem rosto, tem voz, tem nome. Aqui cê vive de nada em nada, boca em boca, fome em fome. Cê pisa no mato, na terra, no esgoto. Ninguém bebe a tua lágrima nem ri teu sorriso. Teu cheiro ninguém cheira e teu nome ninguém sabe. Teu samba ninguém ginga e tua boca ninguém abre. Ninguém apaga teu barraco quando pega fogo, ninguém te enxuga quando vem enchente. Aqui cê não tem ninguém nem nada. Lá embaixo é que tem gente. Cê nasceu no lado errado, ouvia. Aqui em cima tem preto, tem noite e faz frio. Tu é claro, moleque, que nem o dia. Desce que aqui tu não encontra saída. Lá embaixo tem mãe, tem pai, tem comida. Lá é que tem gente de verdade e tem vida.
Desceu. Desceu do morro e foi pra baixo como a casa de dona Maria sempre ia na chuva. Andou lá por baixo como cão que cai do caminhão de mudança. Quis latir, abafaram. Quis chamar, não ouviram. Quis gritar e barraram. Aqui embaixo cê tenta e não consegue, ouvia. É tristeza, é cruel, é dureza João. É sempre sem fundo. Cê enta escalar mas vai pra baixo. Pra baixo dos toldos, paredes, encanamentos. Sob os pés dos outros, sobre os joelhos próprios. Aqui embaixo ninguém te levanta a voz e os olhos. Ninguém chora tua dor nem te faz alegria. Chorar é para os fracos, e todos choram. Melhor ir chorando moleque, lhe diziam. Aqui embaixo tu não é nada.