domingo, 22 de abril de 2012

Eu

  Parece bizarro. Qualquer um que olhe pode ver, mas tem que ser visto corretamente. Não se sabe ao certo o que seria se não fosse aquilo, mas muito já se pensou sobre. Alguns elogiam. Acham engraçadinho, conformadinho, dentro de um padrão que ele não estabeleceu. Outros diferem. Acham peculiar por demasia, não aprovam e preferem não olhar por muito tempo. Todo mundo tem um, mas ninguém se satisfaz em ver o próprio. É preciso olhar o dos outros, devagar e divagando. Fazer com que, de algum modo, olhem também para o seu.
  É incrível. Divertido, invertido e atrevido, olha fixamente para quem o olha de volta, encarando firmemente como quem estuda uma feição para imita-la. E imita. É cheio disso, daquilo, de tudo e de não-sei-quês. Se lhe desviam o olhar, retribui do mesmo modo, de modo que não se vê o que ele está olhando de modo algum. Ficar próximo só faz distrair e se atrair, mas não é difícil de trair por uma ou outra imperfeição. Não é nem de longe perfeito (muito menos de perto), mas necessita-se conviver com ele. Alguns convivem tanto que ele parece se o único motivo para viver. Ao diabo com os outros! E os outros nem sempre se apaixonam pelo seu de posse, passando a tentar torná-lo igual aos alheios.
  E ele sempre ali. Observando, imitando, prosperando, chafurdando em si e sendo. E é. Nem se sabe defini-lo mas ele está sempre em alta definição. Em alta. Ele nunca sai de moda, está sempre dentro dela, e quem quer retirá-lo? Basta olhar pra ele e ver o que tenta ser. Mostra exatamente o que se é, justificando sua alcunha de reflexo. Refletindo-o aqui, em minha frente, percebo que ele talvez seja eu.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

No meio

No meio do caminho tinha uma pedra
Bem ali, no meio.
Tinha uma pedra no meio do caminho.
Tinha.

Mas eu chutei a pedra.
Eu afastei a pedra.
Eu afanei a pedra.
Eu difamei a pedra.

Tem uma pedra na beira do caminho.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Encarnação

  Todo mundo a conhecia. Tratavam-na por Dona. De que eu não sei; levando aquela vida simples não parecia ser dona de nada. Mas assim a tratavam. Morava ali, sozinha, na esquinazinha, não sabe onde é? Todo mundo sabia. Dona Encarnação conhecia todo mundo. Conversava com os rapazes na rua, que a cumprimentavam sempre do mesmo modo, acenando com a cabeça. Elogiava as moças, que lhe traziam doces e salgados de graça e ela só precisava colocar na conta de Deus. Brincava com as crianças, que sentavam em seu colo, lhe pediam por histórias e as ouviam sem dizer uma palavra  que fosse, exclamando apenas com os olhos.
  Dona Encarnação era de todos. Precisasse o menino de ajuda ela dava. Carecesse a moça de conselho lá estava. Até os homens e mulheres já maduros e com tempo de vida gasto iam até ela pra desabafar e pra que fossem desabafados. Ela sempre ali, com os olhos pesados e o sorriso presente, nunca negando nada, sempre se doando toda. E amavam-na. E ela amava. Sem excluir ninguém, sem esquecer nada, mesmo com a memória já falha. Não sabiam de onde viera. Ela não tinha ninguém, mas todos a tinham. Aparecera por ali pra viver e pra ser vivida por quem quisesse. Desde que chegara, unira a vizinhança por um amor indelével e fraterno. Saía todos os dias e se sentava no quintal da frente, em sua cadeira de balanço, acompanhando a vida externa diariamente como quem acompanha uma dessas novelas de televisão que interessam um país inteiro.
  Um dia não saiu. Esperaram o dia todo, os transeuntes, estranhando a ausência dela que já era um patrimônio particular do bairro, um monumento que piscava e respirava. Chamaram-na; não respondia. Preocupou-se toda uma vizinhança. Os rapazes escalaram o muro e arrombaram a porta. As moças ofegavam. Cautelosamente entraram e percorreram a casa, com a própria palpitação quase ensurdecendo-os. Foram encontrar dona Encarnação sentada em sua cadeira, com a cabeça pendente sobre o corpo desvanecido. Desencarnou.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ode ao sono

Composto de vogais (Uaaah!)
Imposto por vagais
Driblando as verticais;
O sono.

Sentido por fiscais
Levado aos imorais
Inércia de imortais;
Eu sonho.

Inspirando sempre mais
Amolecendo os vocais
Leis paradoxais;
Proponho

Que se deite sem multa,
Que de sono se cubra,
E mesmo levando a culpa:
Eu durmo.