quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Procrastinar

   Tem-se falado muito em procrastinar. Tanto, que eu fui contagiada. Não só pela procrastinação, mas pelo falar nela. Aliás, eu procrastinei pra escrever esse texto. Vou procrastinar para fazer o próximo, porque assim todos poderão procrastinar para ler. Como eu fingia dizer, procrastinar está na moda. Está na moda, está sendo muito falado, está sendo mais usado que gerúndio. A procrastinação é tendência. E como toda boa tendência, todos devem aderir. E eu duvido muito que ninguém nunca tenha usado procrastinação.  
   O mundo procrastina, e se ele pode, porque não posso? Empurrar com a barriga? Comigo mesmo. Procrastinar é até gostoso de falar. Estoura nos lábios, com essas consoantes fortes e decididas. E nós decidimos procrastinar. Decidimos pensar ao invés de fazer, porque pensar exercita os músculos cerebrais e fazer cansa todos os outros músculos. Decidimos depois que vamos parar com essa mania! Não, não a mania de procrastinar e sim a mania de ter pressa em fazer. Mas o que é mesmo procrastinar?  
   De etimologia que eu não tenho tanta certeza e talvez vá pesquisar mais tarde, procrastinar é o "só mais cinco minutinhos". Procrastinar é o não fazer hoje o que se pode fazer daqui algumas semanas, se der tempo, talvez. É bater os pés no ritmo da música e não ir lá dançar. É tamborilar os dedos na mesa, pensando em esquecer aquilo que lembrou que devia fazer. É protelar, adiar, empurrar, fechar a porta com a cadeira e não deixar sair, porque talvez você lembre de soltar. É adiantar o relógio pra sentir o alívio quando pensar que se está atrasado, mas não está. É o mandar um recado no lugar de telefonar. Não é a preguiça, é o adiamento. É adiar o certo e não ter tanta certeza. Procrastinar, enfim, é algo que estamos empenhados em fazer. Queria ter uma conclusão mais sólida para o procrastinar, mas quem sabe daqui a pouco...

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Quosque tandem?

  Estava reclamando. E nem sabia  pelo que o fazia. Só sabia que reclamava, em altos brados que ecoavam dentro da cabeça, ricocheteando nas paredes do crânio, ultrapassando a massa cinzenta e repousando nos ouvidos alheios. E vivia assim, no meio de palavras declamadas pra que se reclamasse algo. Mas as reclamações não eram próprias. Eram de todos, eram alheias e públicas, não sumiam nunca, não deixavam de existir e nem deixam. As reclamações se espalham e prevalecem. Resistem ao tempo e ficam velhas, velhas, quase caducas, mas ninguém nunca as deixa de lado. As reclamações fingem que se dissolvem, num pique esconde onde ninguém quer procurar mas sempre acha, involuntariamente. O mundo reclama. É sobre isso, aquilo, aquele, esse e o outro, sempre e sobre tudo, num infinito descontentamento quase prazeroso que permite, além de aliviar frustrações, irritar o outro, fazendo com que ele agora passe a reclamar frustrado. Assim as reclamações passam a durar pra sempre, num contrato duradouro com o infinito, sem que se possa exterminá-las. E quando não se reclama? Alguém pode estar se perguntando. Ora quando não se reclama se está fazendo a maior reclamação possível. A reclamação pelo direito de viver, leve e tranquilamente, deixando que apenas o resto do mundo se preocupe em reclamar. Aliás, a reclamação também pode ser útil e vem ao socorro quando é preciso. Podem-se reclamar direitos, deveres, dinheiro ou qualquer outra bobagem que alguém julgue preciso reclamar. Mas às vezes, numa direção de “quase sempre”, o reclame se torna cansativo e entediante depois de um tempo, e as reclamações voltam à sua inércia, em sua origem e natureza de frustração quase proposital. Mas continua reclamando. E não sabe e nem dá a mínima em saber o porquê. Só sabe que brada alto, com outros reclamantes que se juntam num protesto contra algo que não se incomoda em se incomodar. Até quando? 

domingo, 11 de setembro de 2011

De estômago a dentro (amor)

  Estava eu sentada numa mesa de restaurante para questões de almoço e observando um casal. Típico romance entre uma moça bonita, jovem, despreocupada e leve, que ria e comentava sobre o restante das pessoas e sobre as bestialidades pertencentes à juventude e um rapaz, tanto mais velho porém ainda novo, que me surpreendeu um pouco. Agia quase como que hipnotizado. Sorria quando ela sorria, sem desgrudar os olhos dos dela, num interesse quase perturbador que dava vontade de estalar os dedos e ordenar que acordasse do transe. 
   O fato é que ela se sentia feliz. Completa. Olhava pra ele com os olhos brilhantes e arregalados num sorriso aberto e disposto, com a voz morna e beijos longos. Era um amor de dar gosto. Se amavam ali, na mesa, sem pudor, sem com discrição. A conversa parecia interessante, os risos dela se ampliavam. Depois de um tempo a refeição veio e comeram como comem apaixonados quando saem pra comer. Era de revolver o peito e amansar o estômago. Numa doçura que amargava os invejosos, caso houvessem.
    Daí que depois da ceia ela se retirou da mesa para o banheiro, não sem um beijo no amado. Que moça sortuda. Que rapaz admirável. Nem bem ela saiu já ele falava no telefone com uma outra, chamava de benzinho, fazia graça e marcava encontro. Romance para a digestão, talvez.

sábado, 13 de agosto de 2011

A Não Opinião Pública

   A Opinião Pública andava descontraidamente por aí, sem pressa, sem compromisso. Passava muito bem, obrigada. Estava sempre nas ruas, nos bares, nas lojas. Fazia uma pontinha na prefeitura, passava por lá às vezes cantarolando, feliz da vida, cumprimentando os trabalhadores, dando uma olhada nas reuniões, rindo-se do cansaço no fim da tarde. Gostava muito de um bom chopp com os amigos nas sextas e de sair para as  festas nos sábados. Chegava tarde em casa, quase não dormia. Solicitada sempre e sempre solícita, era companheira, nunca deixava ninguém na mão. Começou a ficar famosa. Era chamada pra palestras, discursos e mutirões. Ia a passeatas, reivindicava direitos e tentava cumprir obrigações. Fazia tudo pra ser ouvida, inclusive escândalo.
   Quando começou a fazer escândalo resolveram boicotar a Opinião Pública. Botaram-na pra baixo, a coitada. Fazia um esforço, mas já estava por fora, ninguém mais queria ouvir a pobre. Pobre Opinião Pública. Passava vexame ao tentar falar, lhe davam as costas ou não lhe davam nada. Foi despedida, não ia mais à prefeitura. Faltava aos chopes, às baladas. Sumiu da rede mundial de computadores, da rede internacional de comércio e da rede no quintal do vizinho. Não queriam mais saber dela. Se acaso era chamada para um desabafo amigo acenava com a cabeça como quem já está abafada demais e não ajudava de nada.
   Trancou-se em casa a Opinião Pública. Ninguém sabia onde andava. Às vezes diziam que a tinham visto numa numa rua, beco, boteco ou bordel mas logo sumiu de vez. Passou a ser chamada Não Opinião Pública, por que já não era nada. Dizem que anda noites por aí, embebedando-se, conversando sozinha em voz alta de frente ao espelho ou ao copo meio vazio, meio cheio. Não se dá mais ouvidos a Opinião Pública. Nem ela mesma escuta o que diz, se é que diz algo. Parece que se calou a infeliz ou desaprendeu a falar, quem sabe.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Telefonema

Diálogo 1


- Alô?
- Alô, quem gostaria?
- Gostaria de quê, especificamente?
- Quem gostaria de falar, ué!
- Ah isso como eu vou saber? Acho que quem não aprendeu a falar que gostaria, você não?
- Pare de brincadeiras amigo e diga logo quem fala!
- Todo mundo fala. Bom, a maior parte.
- Mas quem é que está falando?
- Milhões de pessoas veja só! Inclusive nós dois, ora bolas..
- Pare já! Diga quem é aí do outro lado falando comigo!
- Ah, aqui sou eu.
- Quem seria "eu"?
- Como é que eu vou saber, se nem o colega sabe? Diga você quem é..
- Mas foi você quem ligou pra cá! Você é quem deve dizer!
- Mas eu não conheço você. Nem sei se é com você que devo falar.
- E como se chama a pessoa com que o senhor deve falar?
- Tem por nome Carlos. Seria o colega, ou um conhecido?
- Não, aqui não tem nenhum Carlos!
- Então o amigo desculpa, que foi engano. Tchau.

domingo, 24 de julho de 2011

Nunca entendo o bastante pra chegar ao ponto do saber.
E quando não sei, não consigo.
Quando não consigo, não faço.
Quando não faço, não sou.
Quando não sou, não vivo.
Quando não vivo, só existo.
E existir nunca me leva ao ponto de entender alguma coisa, seja ela qual for.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Gerúndio

   Esperando, aguardando, empurrando, levando, não me importando, nem ligando, pouco me lixando, me fechando, me mudando, me desocupando, me demorando, me espreguiçando, delongando, protelando, argumentando, me desculpando, tamborilando, prolongando, adiando, prorrogando, desligando. Estou e vou. Procrastinando.

terça-feira, 1 de março de 2011

Auto da Lusitânia

Teatro de Gil Vicente



Ninguém:
Que andas tu aí buscando
Todo Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando.
por quão bom é porfiar.
Ninguém:
como hás o nome, cavaleiro?
T. Mund.:
Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.
Ninguém:
Eu hei Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém:
E agora que buscas lá?
T. Mund.:
Busco honra muito grande.
Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ele já.
Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo,
e Ninguém busca virtude.
Ninguém:
Buscas outro mor bem qu'esse?
T. Mund.:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém:
E eu quem me reprendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu:
Escreve mais.
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer um extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?
T. Mund.:
Busco a vida e quem me dê
Ninguém:
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu:
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Que sorte?
Belzebu
Muito garrida
Todo o Mundo busca vida,
e Ninguém conhece a morte.
T. Mund.:
E mais queria o paraiso,
sem mo ninguém estovar.
Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
Que todo mundo quer paraíso,
e Ninguém paga o que deve.
T. Mund.
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que Todo o Mundo é mentiroso,
e Ninguém diz a verdade.
Ninguém:
Que mais buscas?
T. Mund.:
Lisonjear.
Ninguém:
Eu estou todo desengano.
Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.
Dinato:
Que me mandas assentar?
Belzebu:
Põe ai mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
 
Porfiar: lutar por algo, desafiar, insistir.

Garrida - sentido no texto: elegante, bem-feito, vistoso